"Ler é sonhar pela mão de outrem. Ler mal e por alto é libertarmo-nos da mão que nos conduz. A superficialidade na erudição é o melhor modo de ler bem e ser profundo."
Bernardo Soares
Livro do Desassossego

sábado, 28 de dezembro de 2013

“Marina”, de Carlos Ruiz Zafón


Foi o quarto livro do autor, depois da “Trilogia da Neblina”, e o último dedicado a jovens/ adolescentes, segundo a sua própria intenção, mas lido por muitos cuja faixa etária já está fora do que se pode considerar “jovem” (apesar da juventude ser, antes de tudo, um estado de espírito). É sem dúvida uma narrativa de suspense, pontuada com momentos altos e reviravoltas constantes. É narrada na primeira pessoa, por um dos protagonistas, Óscar Drai. E vamos tendo acesso às informações ao mesmo tempo que o narrador, seguindo assim por dentro a busca deste pelos acontecimentos passados em Barcelona anos antes dele.  

Aqui os dois protagonistas procuram respostas para um mistério que gira em torno de um médico, um cocheiro/ motorista dedicado ao seu patrão, um empresário falido e sem escrúpulos, um mendigo que vira o homem mais rico de Barcelona, e que se casa com uma atriz explorada como artista por dois irmãos gémeos. Paralelamente a esta, há a história dos protagonistas, cujo final não é feliz, porque a vida nem sempre é feliz. Como também não o foi para aqueles cujo mistério perseguiram.  

É uma obra que nos faz refletir em diversos aspetos humanos, quantas vezes contraditórios: beleza – deficiência física; lucidez – demência; vida – morte; mortalidade – imortalidade. É antes de mais um tributo à vida e faz-nos chegar a uma conclusão: a vida é breve, não sabemos quando pode terminar, há que a viver sem nos importamos (ou tentando minimizar) as nossas limitações físicas. 

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

O Assassinato de Roger Ackroyd

Publicado pela primeira vez em 1926, com o título The Murder of Roger Ackroyd, é normalmente considerado a obra-prima de Agatha Christie. Título que, na minha opinião, se encontra a par com outro policial da autora: “As dez figuras negras”. Como em todos os policiais, a pergunta que domina o livro é “Quem matou X?”, neste caso, “Quem matou Roger Ackroyd?”.



Os factos que se vão apresentando adensam o mistério: todos aqueles que realmente poderiam beneficiar com a morte dele, têm alibis suficientemente convincentes. A um determinado momento, Hercule Poirot (a mais famosa personagem de AC), diz que todos aqueles que estavam à mesa com ele, escondiam algo. Todos eles! E gradualmente, foi-se descobrindo o que cada um escondia. Bem perto do final, Poirot junta novamente todas estas pessoas e confronta a consciência de cada um com os factos.


Já por várias vezes que tinha ouvido falar deste livro, como estando relacionada parte da ação com uma “troca de sapatos”. Ora, ao ler logo após a descoberta do cadáver assassinado, percebe-se quem estava inocente (pelos comentários que já tinham partilhado comigo). Contudo, apesar de ter esta informação, torna-se bastante difícil perceber quem era realmente o assassino. E quando Poirot confronta todos os possíveis, desenha-se um assassino possível bem demais (o que me levou a crer que seria um outro). Contudo, o final supera todas as expectativas. Será sempre aquele que não se não se considerou o verdadeiro assassino. 

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Dia de Natal



Chove. É dia de Natal.
Lá para o Norte é melhor:
Há a neve que faz mal,
E o frio que ainda é pior.
 
E toda a gente é contente
Porque é dia de o ficar.
Chove no Natal presente.
Antes isso que nevar.

Pois apesar de ser esse
O Natal da convenção,
Quando o corpo me arrefece
Tenho o frio e Natal não.

Deixo sentir a quem quadra
E o Natal a quem o fez,
Pois se escrevo ainda outra quadra
Fico gelado dos pés.

Fernando Pessoa

Imagem: Bom Jesus de Braga, retirada de: http://www.tsf.pt/Storage/ng1077888.jpg

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Balada de Neve - Porque hoje começa o inverno!

 

Balada de Neve


Batem leve, levemente, como quem chama por mim...
Será chuva? Será gente?
Gente não é certamente e a chuva não bate assim...
 

É talvez a ventania, mas há pouco há poucochinho,
Nem uma agulha bulia na quieta melancolia
Dos pinheiros do caminho...

Fui ver. A neve caia do azul cinzento do céu,
Branca e leve branca e fria...
Há quanto tempo a não via! E que saudades, Deus meu!
 

Olho através da vidraça. Pôs tudo da côr do linho.
Passa gente e quando passa,
Os passos imprime e traça na brancura do caminho...


Fico olhando esses sinais da pobre gente que avança,
E noto, por entre os mais, os traços miniaturais
Duns pezitos de criança...


E descalcinhos, doridos...a neve deixa ainda vê-los, 
Primeiro bem definidos
Depois em sulcos compridos, porque não podia erguê-los!...


Que quem já é pecador sofra tormentos, enfim!
Mas as crianças, Senhor porque lhes dais tanta dor?!
Porque padecem assim?!...
 

E uma infinita tristeza, uma funda turbação
Entra em mim, fica em mim presa.
Cai neve na natureza e cai no meu coração.


Luar de Janeiro - Augusto Gil

Imagem retirada daqui: http://torre-moncorvo.blogspot.pt/2011/01/paisagens-de-inverno-por-terras-de.html 

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

O Ciclo da Esperança, de Sílvia Raposeira



Uma narrativa que mergulha constantemente numa analepse, e que nos leva a conhecer, em torno da personagem principal, dois momentos especialmente marcantes da sua vida. Aqui, o passado surge como o caminho para as decisões que são necessárias tomar no presente.

Vários momentos poéticos que se articulam e completam a narrativa, numa mistura que nos traz um excelente livro. Contudo, não é livro para ler de ânimo leve ou sem atenção, visto que a autora salta constantemente e sem aviso entre os dois momentos temporais.

Encontramos excertos (como os transcritos abaixo), com um excelente jogo de palavras e de sonoridades. Fazendo estes parte da ausência narrativa, ou seja, pertencendo a uma parte do livro que não faz um avanço substancial no decorrer da ação, simplesmente proporciona-nos o prazer de ler. A descrição de sentimentos interiores que revelam, leva-nos a refletir muitas vezes em torno da nossa própria vida, das nossas próprias ações e dos nossos próprios sentimentos.

“(…) deu-lhe trabalho acrescido nas horas vagas presentemente preenchidas de pensamentos vindos do passado, cozinhou-lhe enredos futuros e hipotéticos na mente em banho-maria, limpou-lhe teias de aranhas presas a cantos de outras eras, mas ferrou-lhe uma marca na alma que teimava em não desaparecer, brincado com sentimentos outrora sentidos e agora docemente acordados.” (p. 41)

Distância curta de mais para nunca se terem cruzado, mas há coisas que não estão nas nossas mãos decidir e o perto muitas vezes está longe” (p. 65)

“(…) em tantos anos ligados às Letras, se cansou de ler os mesmos livros e poemas, porque uma obra literária quando nos toca, agarra-se à nossa alma e passa a fazer parte de nós. É como uma droga da qual se depende e pela qual clamamos nos momentos de ressaca” (p. 84)


Ela ia esperar, mas ao mesmo tempo ia viver a sua vida, viver o que viesse para viver, assim como fazem os habitantes vizinhos do Vesúvio.” (p. 117)

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Contos do Rei Preto e outros contos do Paço, de Manuel Evangelista


Esta obra é um tributo à mais mítica figura da Ribeira de Muge, o Rei Preto. Aqui o autor apresenta-nos estórias que recolheu junto de pessoas mais velhas, quantas vezes iletradas, sobre aquele que é a personagem identitária das gentes do vale da Ribeira de Muge em geral, e de Paço dos Negros em particular.

É um contributo para que esta memória não se perca. Este livro resulta de uma interessante mistura entre documentos encontrados na Torre do Tombo, a tradição oral (que referimos), e uma crítica, quase ao estilo de Gil Vicente nos seus autos, à degradação, ao abandono e sobretudo ao desconhecimento e ao não querer-saber a que o património cultural desta zona tem sido votado. Sobre este último aspeto, podemos deixar aquele que talvez seja um dos mais deliciosos excertos do livro:

Naquele tempo, o rei ocultava-o mas era já senil. Então a camareira-mor, influente e protetora, cavalgou com sua Alteza até aos Paços Velhos e, fugindo de todas as evidências como o diabo da cruz, para dar senho de rectidão e de que nada de valor ali se achava, mandou cavar um buraco no meio do horto e, em pessoa, mergulhou no fundão da fossa. Eis que a camareira, acudindo-lhe um ataque de ciência, ripando de umas berças do horto, saltando lá para dentro, decretou a História do Paço: - Eis, Alteza, a coisa de mor valia que acho nesta terra. Meu real amo e senhor quereides um talo?(p. 69)


 Por outro lado, tendo em conta a presença de negros, o autor coloca o Rei Preto e demais escravos a falar com base nas falas que têm nas obras de Gil Vicente. A poesia popular pontua também este livro em alguns pontos, o que cria uma obra que é, antes de tudo, as memórias de um povo. 

Os Doze Passos das Negras
Compro renda
Vendo renda
Faço renda
Vendo renda a meio tostão
Quatro metros não me chegam
P’ra roda do meu balão

P’ra roda do meu balão
P’ra roda do meu vestido
Compro renda
Vendo renda
Faço renda
Para eu casar contigo

Compro renda
Vendo renda
Faço renda
Vendo renda a três e meio
Quatro metros não me chegam
P’rá barra do entremeio

P’rá barra do entremeio
P’rá barra do meu vestido
Compro renda
Vendo renda
Faço renda
Para eu casar contigo.
(pp. 80-81)

domingo, 8 de dezembro de 2013

O Enigma das Cartas Anónimas, de Agatha Christie


Foi publicado pela primeira vez em julho de 1942, com o título The Moving Finger.

Dois irmãos londrinos mudam-se para uma típica aldeia onde todos se conhecem e sabem a vida uns dos outros. Nesta aldeia, desde há uns tempos, algumas das mulheres recebem cartas anónimas, com injúrias e calúnias das suas vidas íntimas, até que uma delas conduz ao aparente suicídio de uma delas. O autor desconhecido das cartas é responsabilizado por esta morte. No dia em que se completa uma semana desta primeira morte, há uma segunda, e desta vez é um homicídio, sem sombras de dúvidas. E o verdadeiro mistério é mesmo quem é o verdadeiro autor destas cartas.

O grande mistério acaba por ser resolvido por Miss Marple, uma das duas personagens criadas por Agatha Christie. E curiosamente, Miss Marple acaba por ter um papel muito pouco relevante e secundário. Aparece já a 2/3 da ação do livro, e praticamente só tem ação no final, quando explica como se processaram os dois homicídios.


Não é um dos melhores livros da autora, contudo tem algum brilho. Miss Marple perde um pouco de protagonismo, por ter um papel mais secundário a que não se está habituado nos livros de AC. Poderia ser igualmente uma narrativa igualmente boa, mesmo sem a presença de Miss Marple. 

sábado, 7 de dezembro de 2013

COMPROMISSO - para começar um blog sobre livros e leituras

Como começar é sempre uma incógnita. Criar um espaço onde se pretende expor opiniões e considerações sobre literatura. Ter um espaço onde poder fazer tudo isto. 

Porque a poesia é o alimento da alma, nada melhor que começar com um poema. Poema este da autoria e declamado por um camarada comunista na passada quinta-feira, com o título "Compromisso". Comprometimento é algo que nos falta a muitos de nós!

COMPROMISSO

Não é um ideal. É mais do que isso.
É selar com a vida um compromisso
De luta pelo triunfo da Verdade.
Por fora ou por dentro do Partido
O gesto de lutar só faz sentido
Se conduzir, por fim, à Liberdade.

Que ninguém se envergonhe nem desista
porque houve quem chamasse comunista
Como quem chama nomes ao vizinho.
Orgulho, sim, decerto sentirás!
Quem é pela Verdade e pela Paz
Encontra a Liberdade no caminho.

Prossegue a tua luta, Camarada,
Que pode transformar um simples nada
Numa vontade enorme de vencer.
Não é um ideal. É mais do que isso.
Selaste com a vida um compromisso
Que há-de ficar contigo até morrer!

Palma Carlos