"Ler é sonhar pela mão de outrem. Ler mal e por alto é libertarmo-nos da mão que nos conduz. A superficialidade na erudição é o melhor modo de ler bem e ser profundo."
Bernardo Soares
Livro do Desassossego

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Contos do Rei Preto e outros contos do Paço, de Manuel Evangelista


Esta obra é um tributo à mais mítica figura da Ribeira de Muge, o Rei Preto. Aqui o autor apresenta-nos estórias que recolheu junto de pessoas mais velhas, quantas vezes iletradas, sobre aquele que é a personagem identitária das gentes do vale da Ribeira de Muge em geral, e de Paço dos Negros em particular.

É um contributo para que esta memória não se perca. Este livro resulta de uma interessante mistura entre documentos encontrados na Torre do Tombo, a tradição oral (que referimos), e uma crítica, quase ao estilo de Gil Vicente nos seus autos, à degradação, ao abandono e sobretudo ao desconhecimento e ao não querer-saber a que o património cultural desta zona tem sido votado. Sobre este último aspeto, podemos deixar aquele que talvez seja um dos mais deliciosos excertos do livro:

Naquele tempo, o rei ocultava-o mas era já senil. Então a camareira-mor, influente e protetora, cavalgou com sua Alteza até aos Paços Velhos e, fugindo de todas as evidências como o diabo da cruz, para dar senho de rectidão e de que nada de valor ali se achava, mandou cavar um buraco no meio do horto e, em pessoa, mergulhou no fundão da fossa. Eis que a camareira, acudindo-lhe um ataque de ciência, ripando de umas berças do horto, saltando lá para dentro, decretou a História do Paço: - Eis, Alteza, a coisa de mor valia que acho nesta terra. Meu real amo e senhor quereides um talo?(p. 69)


 Por outro lado, tendo em conta a presença de negros, o autor coloca o Rei Preto e demais escravos a falar com base nas falas que têm nas obras de Gil Vicente. A poesia popular pontua também este livro em alguns pontos, o que cria uma obra que é, antes de tudo, as memórias de um povo. 

Os Doze Passos das Negras
Compro renda
Vendo renda
Faço renda
Vendo renda a meio tostão
Quatro metros não me chegam
P’ra roda do meu balão

P’ra roda do meu balão
P’ra roda do meu vestido
Compro renda
Vendo renda
Faço renda
Para eu casar contigo

Compro renda
Vendo renda
Faço renda
Vendo renda a três e meio
Quatro metros não me chegam
P’rá barra do entremeio

P’rá barra do entremeio
P’rá barra do meu vestido
Compro renda
Vendo renda
Faço renda
Para eu casar contigo.
(pp. 80-81)

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