"Ler é sonhar pela mão de outrem. Ler mal e por alto é libertarmo-nos da mão que nos conduz. A superficialidade na erudição é o melhor modo de ler bem e ser profundo."
Bernardo Soares
Livro do Desassossego

segunda-feira, 17 de março de 2014

O Terceiro Bispo, de Frederico Duarte Carvalho

Lançado em novembro passado, este livro cruza mitos, coincidências e factos. A sua ação gira em torno de um plano macabro para por fim ao papado, com base nas profecias de S. Malaquias. Revela um forte componente de investigação do funcionamento e da história do papado, assim como das teorias mais ou menos conspirativas em torno das aparições de Fátima. A obra, apesar de passada entre maio e outubro de 2013, mergulha algumas vezes numa analepse ao tempo da primeira Guerra Mundial, para melhor poder sustentar a ação principal.

O autor, por diversos momentos, faz despertar a curiosidade sobre determinado facto, mantendo o suspense, elevando as expectativas, conseguindo nunca as defraudar. Tem um leque médio de personagens na ação principal (cerca de 15), sendo a maioria delas, sobretudo as que atravessam a obra de uma ponta à outra, bem construídas, nomeadamente o protagonista, o jornalista Joaquim Barata, assim como o advogado Fagundes. A teia de intrigas está bem construída, revelando imaginação e a investigação a que se aludiu anteriormente, conseguindo ligar as profecias de S. Malaquias e o Terceiro Segredo de Fátima.


Contudo, apesar de uma boa ação, o final fica bastante aquém do que seria de esperar. Digamos que não cumpre a função de nos deixar embasbacados. É como uma torneira repentinamente fechada, e que não nos matou totalmente a sede.

sexta-feira, 14 de março de 2014

Cão da Morte, de Agatha Christie


Publicado pela primeira vez em 1933, com título original “The Hound of Death ant Other Stories”. Este livro é um conjunto de 12 contos, onde apesar de alguns se enquadrarem de alguma forma num crime convencional, ou por outra, num crime com uma explicação dentro do conceito da racionalidade, a sua grande maioria remete para o drama psicológico, isto é, ocorre uma morte cuja justificação assenta em motivos parapsicológicos e que pode ter envolvidas pessoas com fortes perturbações mentais. 

Contrariamente a outros policiais de Agatha Christie, este destaca-se pela existência de um elemento sobrenatural e exótico a povoá-lo, ou seja, nem sempre há uma explicação racional para as mortes existentes.

Traz-nos um registo diferente da autora, cujas obras são normalmente povoadas pela dedução profissional (com o superintende Battle ou Poirot) ou mais amadora (com Miss Marple). Contudo, deixa transparecer a versatilidade, ainda que sempre dentro do género policial, de Agatha Christie. Desta série de contos, “O Mistério do Pote Chinês” foi adaptado para uma série de Agatha Christie em 1982. 


segunda-feira, 10 de março de 2014

Varandas para o Atlântico, de Sousa Dinis


Este livro é uma busca pela identidade. Apesar da ação começar em Portugal, desenrola-se quase toda no Brasil. Com uma forte componente brasileira, mistura-se aqui o idioma português continental com o português brasileiro. É o tipo de livro que nos dá vontade de atribuir duas estrelas no Goodreads quando começamos a ler, porque as soluções para os enigmas que o protagonista tem de resolver caem-lhe do céu. Contudo, se conseguirmos suportar este desencanto narrativo, e levar a leitura até mais à frente, percebemos que isso foi intencional. Com uma escrita rica, transportamos para o momento em que as coisas acontecem, e vimo-las desenrolar à nossa frente. Como se os Marnotos (apelido de família do protagonista) estivessem diante dos nossos olhos. 

sábado, 8 de março de 2014

Hoje Alberto Caeiro faz 100 anos!


"foi em 8 de Março de 1914 — acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos."


Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.

Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.

Como um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.

Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.

Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.

E se desejo às vezes
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita coisa feliz ao mesmo tempo),
É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.

Quando me sento a escrever versos
Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,
Sinto um cajado nas mãos
E vejo um recorte de mim
No cimo dum outeiro,
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideias,
Ou olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho,
E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz
E quer fingir que compreende.
Saúdo todos os que me lerem,
Tirando-lhes o chapéu largo
Quando me vêem à minha porta
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.

Saúdo-os e desejo-lhes sol,
E chuva, quando a chuva é precisa,
E que as suas casas tenham
Ao pé duma janela aberta
Uma cadeira predileta
Onde se sentem, lendo os meus versos.
E ao lerem os meus versos pensem
Que sou qualquer cousa natural -
Por exemplo, a árvore antiga
À sombra da qual quando crianças
Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
E limpavam o suor da testa quente
Com a manga do bibe riscado.